Entre tempos e Fragmentos
Marcelo Lobato
TEXTO CURATORIAL
Ao intitular o projeto que dá origem a essa exposição de “Fragmentos da Memória”, Marcelo Lobato retoma, com alguma radicalidade, uma questão tão antiga quanto aquela já formulada na aurora de nossa cultura, acerca das relações entre tempo, memória e representações artísticas. Tais relações ganharam, ao longo de nossa história, diversas formulações e ainda hoje se encontram no cerne de nossas indagações a propósito do chamado patrimônio cultural, de questionamentos acerca da preservação de uma memória comum, coletiva, seja nas formas ditas “materiais”, assim como nas “imateriais”. De todo modo, essas questões revelam a nossa ambiguidade em relação ao passado: de um lado, ele é rapidamente devorado pelo progresso técnico-científico, numa sociedade caracterizada pelo culto ao consumo da novidade; de outro, entretanto, lutamos contra seu esquecimento e acreditamos que sua preservação é fundamental para que continuemos existindo como uma “cultura”. Assim sendo, atribuímos à memória um pathos – ao defendermos apaixonadamente a necessidade de sua preservação - e um ethos – tal defesa nos torna responsáveis tanto por sua conservação quanto por sua transmissão às gerações futuras.
O trabalho de Marcelo Lobato não escapa, em princípio, dessa encruzilhada. Entretanto, ele a problematiza pelo seu reverso. Justamente porque entende que a memória não escapa ao tempo e que o esquecimento não é o vilão da história. Contra uma ideia historicista de conservação e restauração, para quem o passado deve sobreviver ao tempo e ressurgir fulgurante em um prédio ou monumento em meio ao caos das cidades no século XXI, e retomando o conhecido princípio da pátina, Marcelo Lobato desloca nosso olhar do espaço da natureza, ou seja, dos processos de oxidação e desgaste em materiais como o ferro, o bronze e mesmo a madeira, para o espaço da história e da cultura, ou seja, para o espaço da temporalidade, da transitoriedade, do perecimento.
superposição das camadas de tinta, ora com pinceladas suaves, ora com alguma violência, reeditam a luta ancestral entre a memória e o esquecimento, espaço agônico, no qual o esquecimento produtivo e criativo impede que a memória insista em querer devorar o tempo. Daí o estado de inacabamento desses trabalhos, como se o próprio processo criativo do artista não estivesse imune a essa luta.
O resultado, ao mesmo tempo estético, ético e político do que Marcelo Lobato traz a público nesse momento não é a simples reafirmação de uma identidade cultural a ser preservada, mas sim a do inacabamento do sentido pela reafirmação da historicidade. Esses trabalhos retiram seu pathos e seu ethos da certeza de que nada escapa à corrosão do tempo. Inclusive nossa própria memória.
Ernani Chaves
Professor da Faculdade de Filosofia da UFPA